A vida nos presenteia a todo momento: um sorriso aqui, uma flor que se mostra ali, um reencontro inesperado, uma palavra de apoio, um olhar de aprovação.
Em meio às contínuas indagações da existência, esses presentes nos chegam como respostas do Amor. Se de todo não dissipam as sombras, com certeza abrem um rastro luminoso por onde os nossos passos trôpegos conseguem continuar a caminhada.
Convidei para uma roda de conversa os fantasmas que me habitam. O primeiro a chegar foi o Não Pertencimento. Entrou com seus braços e pernas enormes, esbarrando em si mesmo e com medo de incomodar. Olhou em volta como a procurar seu canto e, sem que o pudesse achar, se ajeitou desajeitado em um canto qualquer.
Logo atrás dele veio a Carência com seus olhos grandes e famintos. Sorria um sorriso triste, arrastando um longo e pesado véu, e ocupou o lugar mais afastado de todos.
Já faz algum tempo (acredito que esse seja um presente do envelhecimento) que venho aprendendo a saborear os momentos vividos. É como se relesse com atenção uma parte da história que ainda estou construindo.
Há duas semanas, escrevi sobre a apresentação do livro Memórias de chá, escrito pelas educandas do Centro de Integração Social (CIS). Nesse evento, uma cena se destaca entre as minhas lembranças: a diretora da unidade presta uma linda homenagem ao seu pai para representar, naquele momento, o leitor.
Nos projetos que tenho e que ainda insistem em acordar em mim, apesar dos meus 68 anos, um deles é o de ampliar a minha atuação nos cursos de Comunicação Não-Violenta e na aplicação de uma metodologia de trabalho em grupo que traz em sua filosofia o germe da comunicação compassiva: o Círculo de Construção de Paz ou Círculo Restaurativo, como também é conhecido.
Aprendi a ler e a escrever em uma roda. Sentada em círculo com meus irmãos e irmãs, ouvíamos enlevados as histórias que a nossa avó contava. Todos os dias à tardinha, ela sentava a netarada nos grandes bancos de madeira dispostos em roda na varanda da casa para nos ensinar a ler o mundo.
Como educadora do sistema prisional há dez anos, tenho presenciado, das mais diversas maneiras, a complexidade do humano que nos habita. Maravilhamento é a palavra que me define quando constato que em um lugar tão improvável como o espaço prisional a ternura teima em brotar.
O projeto O verde que cura realizado em 2023 no Centro de Integração Social (CIS) — com alunas de Ensino Fundamental e Médio teve como produto final a produção de um livro de memórias intitulado Memórias de chá.
Semana tensa e intensa. Sou professora da rede estadual de ensino desde 1998. Na semana que passou, entre muitos acontecimentos difíceis, a visualização impressa dos proventos a serem recebidos após a aposentadoria me deixou um gosto amargo na boca.
Ao ver a minha vida profissional de quase 30 anos de docência avaliada com um valor insuficiente para os recursos básicos da sobrevivência, um filme passou em minha cabeça: o penoso processo formativo realizado já na fase adulta, cuidando sozinha da casa e do filho, as inúmeras horas de planejamento, a carga horária de trabalho, muitas vezes em três turnos, a multidão de crianças, jovens e adultos que atendi...
É muito cedo ainda, e no meu caminho para o trabalho, observo a multidão que passa absorta no mundo formatado da telinha, hoje quase uma extensão do corpo curvado, impedido de ver a vida ao redor.
Em meio à profusão de recursos comunicativos e da troca desenfreada de mensagens em diferentes plataformas padecemos da escassez do encontro.
Eu estava ajeitando o meu material de trabalho quando ela chegou na sala, anunciando: "Professora, eu vim pra escola mas não sei nada. Eu sou especial. Não sei ler... não sei nada!". Olhei curiosa para a voz forte que se apresentava assim, sem aparente humilhação ou timidez. Ela estava ali, inteira, sem máscaras. Uma mulher negra, bonita e alegre, nos mostrando o que sabia de si. Sim, eu pensei, de imediato, você é especial!
Curiosa, me aproximei dela. Fiz algumas perguntas às quais ela respondia rindo: "Não sei, professora". Mas sabia que seu sobrenome era do avô porque ela não conhecia o pai. E ao contar isso, ela soletrou devagar seu sobrenome e o fez com a reverência de quem ostenta um troféu.
Costumo não dar muita importância às datas comemorativas. Desce que eu era criança, elas me parecem um tanto estranhas: um dia para homenagear os pais, outro para as mães, um dia para lembrar dos indígenas e outro para os livros e assim o calendário nos apresenta a cada mês ideias a serem pensadas...
Como professora, nunca pautei a minha prática docente pelas datas e confesso, até me irritava, às vezes, ao ter que interromper uma sequência didática para incluir o tema imposto por uma data de maior relevância social e não ficar de fora das discussões do grupo.
Na semana passada eu compareci, como acompanhante de uma pessoa intimada, a uma audiência na 2ª Vara Descentralizada do Boqueirão – Vara de Família.
Espaços públicos institucionais são notadamente espaços de poder e, para as classes menos favorecidas, transitar nesses espaços é, muitas vezes, penoso. Apesar da minha trajetória acadêmica e do conhecimento dos meus direitos, esses espaços costumam acordar em mim memórias de exclusão e até de medo.