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Opinião

Gravura e colapso ambiental: arte indígena contemporânea

Reflexões sobre a arte indígena contemporânea e o colapso ambiental.Reflexões sobre a arte indígena contemporânea e o colapso ambiental.
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Prêmio Pipa
Denilson Baniwa, Dança dos selvagens da missão S. José, colagem sobre litrografia do século XIX, 2021.
Gracon

Finalizei o artigo da semana passada com uma pergunta sobre o potencial de mudança das artes visuais em relação ao colapso ambiental que estamos vivendo. Mais especificamente, como as artes visuais podem contribuir para a construção de uma imaginação crítica que se reflete em ações concretas ou, em sentido inverso, propor ações concretas que se refletem na construção de uma imaginação crítica. 

Neste texto, abordarei esse assunto olhando para a arte indígena das Américas. Primeiro, descrevo a estrutura conservadora do sistema de arte, sobretudo aquela ligada ao grande capital. Na sequência, reflito sobre a relação tensa entre as tradições indígenas e o mercado. Finalizo pensando como a barreira linguística que nos distancia dos modos de pensar dessas tradições pode ser diminuída pelo contato com a sua produção visual. Ao longo do texto, destaco algumas obras indígenas contemporâneas em que a gravura está presente.

Obstáculos estruturais

O primeiro obstáculo que as artes visuais encontram no sentido de promover mudanças socioambientais mais amplas é que, se reduzidas àqueles objetos e ideias que encontramos dentro de museus e galerias, ainda constituem um fenômeno bastante elitizado em nossa cultura, em especial se olharmos para os dados do Censo de 2022 sobre a distribuição e o acesso a essas instituições no território brasileiro. 

Outra questão é que as recentes iniciativas do mercado de arte (leia-se, seus agentes) de dar visibilidade à produção de artistas mulheres, afrodiaspóricos e indígenas, mesmo sendo muito importantes, não são suficientes para mudar o sistema que levou essas mesmas manifestações a serem marginalizadas. Mudar o discurso não muda o fato de que continuamos entrando nos mesmos lugares, vendo os mesmos modos de organização das obras no espaço e também os mesmos grupos de pessoas. 

Em uma palestra de agosto de 2023, por ocasião da exposição Histórias indígenas, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), perguntaram a Edson Kayapó, um dos curadores, como fazer a mediação entre a arte indígena e um público não indígena, ou seja, como expor arte indígena no museu sem colonizá-la. Kayapó, em sua resposta, reforçou que antes de ser um curador é um educador, trabalhando nas aldeias e nas periferias, junto a grupos subalternizados. Podemos ler no que ele não disse que o sistema de arte, ligado ao capitalismo, tende a reproduzir seus modelos, independentemente do objeto de sua atenção no momento. No limite, romper com esses modelos implicaria em romper com a própria ideia de museu.

Vista da exposição Histórias Indígenas, que ficou em cartaz no MASP, em São Paulo, de 20/10/2023 a 25/02/2024. Fonte: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/events/historias-indigenas/

A questão amazônica

De acordo com o relatório Estado dos Povos Indígenas no Mundo, da ONU, eles ocupam 28% da superfície terrestre, que, por sua vez, abriga 80% da biodiversidade do planeta. No Brasil, a maior parte (63,7%) no reside em terras indígenas na região Norte, onde está também grande parte da floresta amazônica. A floresta é um ponto nevrálgico na corrida contra o agravamento do colapso ambiental, porque constitui um dos grandes sumidouros mundiais das emissões humanas de dióxido de carbono, o principal entre os gases de efeito estufa. Isso significa que a floresta retira esse gás, que contribui significativamente para o aquecimento global, da atmosfera. Portanto, quanto mais árvores em pé, melhor. Os povos da floresta são os grandes responsáveis por sua proteção, mas sua existência continua ameaçada pela colonização e seus efeitos, tais como a construção da Transamazônica, o agronegócio, o garimpo ilegal e o narcotráfico.

Propagandas em grandes revistas brasileiras dos anos 1970 promovem a destruição da floresta. Da esquerda para a direita: construtora Andrade Gutierrez (“rasgamos o inferno verde”), companhia de navegação marítima Netumar (“Amazônia já era!”) e SUDAM , órgão federal criado durante a ditadura militar para financiar a construção da Transamazônica (“Chega de lendas, vamos faturar!”). Fonte: https://oeco.org.br/reportagens/a-amazonia-ja-era-como-a-imprensa-glorificou-a-destruicao-da-floresta-na-ditadura-militar/

Tradições visuais indígenas e mainstream

A ocupação do continente americano pela espécie sapiens, embora objeto de grandes disputas acadêmicas, situa-se há entre 20 e 16 mil anos atrás. Concordo com o arqueólogo Lucas Bueno, da UFSC, que defende que precisamos começar a nossa história não a partir da invasão europeia de 1492 (pré-história sendo tudo que veio antes disso), mas pelos primeiros habitantes do território, dos quais os povos indígenas atuais descendem, como mostram pesquisas recentes com base em análise de DNA

Dentro das culturas indígenas, não existe “arte” no sentido de objetos que possuem um valor contemplativo em si mesmos. O seu significado está intimamente ligado ao seu uso, seja ele prático ou ritual. Fora desse uso, eles não têm o mesmo valor. Além disso, “arte” nessas comunidades é a expressão de um grupo de indivíduos com hábitos e crenças comuns. Portanto, não se apresenta como o resultado da expressão de um “eu” particular. Há uma continuidade entre arte e vida que desconhecemos no Ocidente moderno. 

A arte indígena antiga, preservada em museus, como a cerâmica marajoara, feita por populações que viveram na ilha de Marajó (PA) entre 500 e 1600 anos atrás, é hoje reproduzida no artesanato da população local, com vistas a satisfazer uma demanda do mercado turístico. Em contraste, na série Ocre, a artista indígena Anita Ekman se relaciona com esse patrimônio devolvendo o objeto à cultura que o criou, por meio da performance, mas sem eliminar as marcas de aculturação que ele carrega (observe, na fotografia central da imagem abaixo, por exemplo, a presença do arquivo museológico ao fundo).

Anita Ekman, fotografias da série Ocre, 2019, como expostas na 1º Bienal das Amazônia, Belém, Pará. Fonte: 1ª Bienal das Amazônias
Anita Ekman com a pele impressa pelo carimbo em bastão que porta no pescoço, ao lado de uma urna funerária marajoara pertencente ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Edu Simões. Fonte: https://artebrasileiros.com.br/arte/mundo-quase-magico/
Fotografia da série Ocre, 2019, Toca do Salitre, São Raimundo Nonato, Piauí. Foto: Edu Simões. Fonte: sobre_ocre_de_anita_ekman

Além dos artesãos locais, muitos povos indígenas, para sobreviver, produzem artefatos para venda. Com o objetivo de otimizar a produção, passaram a fazer objetos e adereços corporais com materiais industrializados, como miçangas, penas artificiais e corantes sintéticos. Assim, a cultura indígena é dinâmica e seus valores coexistem, não sem conflito, com os valores da cultura ocidental. Do mesmo modo que os materiais industrializados no caso dos artefatos, quando obras de artistas indígenas entram no circuito da arte contemporânea, elas assumem certas condições de existência dentro desse circuito. Por exemplo, do ponto de vista da técnica (pintura, desenho, gravura, arte têxtil, multimeios, fotografia, vídeo, performance etc.) e da apresentação no espaço, suas obras estão muito próximas das de artistas não indígenas. 

A Bienal de São Paulo de 2021, apelidada de “Bienal indígena”, exibiu muitos trabalhos de arte indígena contemporânea brasileira. Contudo, ocorreu no estado mais rico do país, e num dos que menos abriga populações indígenas (só perde para o Sul). Nesse sentido, merece destaque a 1ª Bienal das Amazônias, realizada em 2023, em Belém, no Pará. Intitulada Bubuia: Águas como Fonte de Imaginações e Desejos, trabalhou com o conceito de “dibubuismo” proposto pelo poeta paraense João Paes Loureiro, que traduz, segundo ele, “a convivência inteligente do nativo com o seu meio”. A palavra vem da expressão de bubuia, usada no Norte para dizer "à deriva, no sentido da corrente”. É evidente um esforço curatorial de aproximação do mundo amazônico a partir da ótica do próprio bioma e da relação que a população local estabelece com ele. “Sou do mundo das águas”, afirma a fotógrafa paraense Elza Lima, homenageada pelo evento, “elas sempre nortearam minha vida, levando a enxergar o todo por essa ótica”.

Institucionalização e a barreira da língua

A institucionalização da arte contemporânea indígena – e sua entrada no mainstream (“fluxo principal”) – permite dar voz a esses povos, que cultivam e protegem as florestas há milhares de anos. Permite também que as pessoas se aproximem dessas existências e olhem para a natureza a partir de matrizes epistêmicas diferentes das suas, ou seja, de um conjunto de conhecimentos (que forma subjetividades) alternativo ao ocidental hegemônico. 

Contudo, há uma limitação nesse processo de buscar nessas culturas uma alternativa: a barreira da língua. Falar a língua faz com que a gente entenda o modo de pensar de uma cultura. Quando os portugueses chegaram aqui, em torno de mil línguas diferentes eram faladas pelos nativos. Essa diversidade reduziu-se, hoje, a cerca de 160 línguas. Nos demais países da América Latina ocorreu o mesmo apagamento. 

O artista indígena mexicano Andy Medina imprimiu cartazes com a pergunta, em língua guarani, Mava’etu ndape roayvu kuaai?, que em português significa “Quem é o analfabeto agora?”. Ele escreve a mesma frase também em outras línguas nativas. Quando os cartazes são postos em pilhas dentro de museus para os visitantes levarem para casa, a pergunta – que na verdade afirma algo – se dirige a esse público, majoritariamente, então, à elite financeira e intelectual. A pergunta coloca o leitor na posição subalterna em que, antes, a cultura moderna europeia havia colocado, pela imposição do monolinguismo, a cultura dos nativos do “Novo Mundo”. Assim, o cartaz faz com que quem tenta lê-lo experimente, por um momento, a sensação de ser objeto da violência colonial. Ao mesmo tempo, ele devolve essa violência à sua fonte, pois está dentro do museu, uma instituição que nasce, na Europa, sob o signo do colonialismo.

Andy Medina, cartaz impresso em offset com a frase em guarani: Quem é o analfabeto agora?, distribuído ao público durante a exposição Histórias Indígenas, MASP, 2023. Fonte: catálogo da exposição.

Pareceu-me importante dedicar um artigo inteiro à arte indígena, por conta da posição central dessas populações na luta ambiental, das particularidades de suas manifestações artísticas e também das contradições que estão implicadas em sua institucionalização, na medida em que se constituem, essencialmente, em culturas anticapitalistas. No artigo da próxima semana, que fechará esta trilogia, escreverei sobre o modo como a arte ocidental contemporânea, em especial a gravura, encampou problemáticas ambientais.

Por Luciana Lourenço Paes.

Última atualização
22/3/2024 10:14
Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

Gravura e colapso ambiental: arte indígena contemporânea

Reflexões sobre a arte indígena contemporânea e o colapso ambiental.Reflexões sobre a arte indígena contemporânea e o colapso ambiental.
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Prêmio Pipa
Denilson Baniwa, Dança dos selvagens da missão S. José, colagem sobre litrografia do século XIX, 2021.
Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
22/3/2024 10:13
Gracon

Gravura e colapso ambiental: arte indígena contemporânea

Finalizei o artigo da semana passada com uma pergunta sobre o potencial de mudança das artes visuais em relação ao colapso ambiental que estamos vivendo. Mais especificamente, como as artes visuais podem contribuir para a construção de uma imaginação crítica que se reflete em ações concretas ou, em sentido inverso, propor ações concretas que se refletem na construção de uma imaginação crítica. 

Neste texto, abordarei esse assunto olhando para a arte indígena das Américas. Primeiro, descrevo a estrutura conservadora do sistema de arte, sobretudo aquela ligada ao grande capital. Na sequência, reflito sobre a relação tensa entre as tradições indígenas e o mercado. Finalizo pensando como a barreira linguística que nos distancia dos modos de pensar dessas tradições pode ser diminuída pelo contato com a sua produção visual. Ao longo do texto, destaco algumas obras indígenas contemporâneas em que a gravura está presente.

Obstáculos estruturais

O primeiro obstáculo que as artes visuais encontram no sentido de promover mudanças socioambientais mais amplas é que, se reduzidas àqueles objetos e ideias que encontramos dentro de museus e galerias, ainda constituem um fenômeno bastante elitizado em nossa cultura, em especial se olharmos para os dados do Censo de 2022 sobre a distribuição e o acesso a essas instituições no território brasileiro. 

Outra questão é que as recentes iniciativas do mercado de arte (leia-se, seus agentes) de dar visibilidade à produção de artistas mulheres, afrodiaspóricos e indígenas, mesmo sendo muito importantes, não são suficientes para mudar o sistema que levou essas mesmas manifestações a serem marginalizadas. Mudar o discurso não muda o fato de que continuamos entrando nos mesmos lugares, vendo os mesmos modos de organização das obras no espaço e também os mesmos grupos de pessoas. 

Em uma palestra de agosto de 2023, por ocasião da exposição Histórias indígenas, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), perguntaram a Edson Kayapó, um dos curadores, como fazer a mediação entre a arte indígena e um público não indígena, ou seja, como expor arte indígena no museu sem colonizá-la. Kayapó, em sua resposta, reforçou que antes de ser um curador é um educador, trabalhando nas aldeias e nas periferias, junto a grupos subalternizados. Podemos ler no que ele não disse que o sistema de arte, ligado ao capitalismo, tende a reproduzir seus modelos, independentemente do objeto de sua atenção no momento. No limite, romper com esses modelos implicaria em romper com a própria ideia de museu.

Vista da exposição Histórias Indígenas, que ficou em cartaz no MASP, em São Paulo, de 20/10/2023 a 25/02/2024. Fonte: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/events/historias-indigenas/

A questão amazônica

De acordo com o relatório Estado dos Povos Indígenas no Mundo, da ONU, eles ocupam 28% da superfície terrestre, que, por sua vez, abriga 80% da biodiversidade do planeta. No Brasil, a maior parte (63,7%) no reside em terras indígenas na região Norte, onde está também grande parte da floresta amazônica. A floresta é um ponto nevrálgico na corrida contra o agravamento do colapso ambiental, porque constitui um dos grandes sumidouros mundiais das emissões humanas de dióxido de carbono, o principal entre os gases de efeito estufa. Isso significa que a floresta retira esse gás, que contribui significativamente para o aquecimento global, da atmosfera. Portanto, quanto mais árvores em pé, melhor. Os povos da floresta são os grandes responsáveis por sua proteção, mas sua existência continua ameaçada pela colonização e seus efeitos, tais como a construção da Transamazônica, o agronegócio, o garimpo ilegal e o narcotráfico.

Propagandas em grandes revistas brasileiras dos anos 1970 promovem a destruição da floresta. Da esquerda para a direita: construtora Andrade Gutierrez (“rasgamos o inferno verde”), companhia de navegação marítima Netumar (“Amazônia já era!”) e SUDAM , órgão federal criado durante a ditadura militar para financiar a construção da Transamazônica (“Chega de lendas, vamos faturar!”). Fonte: https://oeco.org.br/reportagens/a-amazonia-ja-era-como-a-imprensa-glorificou-a-destruicao-da-floresta-na-ditadura-militar/

Tradições visuais indígenas e mainstream

A ocupação do continente americano pela espécie sapiens, embora objeto de grandes disputas acadêmicas, situa-se há entre 20 e 16 mil anos atrás. Concordo com o arqueólogo Lucas Bueno, da UFSC, que defende que precisamos começar a nossa história não a partir da invasão europeia de 1492 (pré-história sendo tudo que veio antes disso), mas pelos primeiros habitantes do território, dos quais os povos indígenas atuais descendem, como mostram pesquisas recentes com base em análise de DNA

Dentro das culturas indígenas, não existe “arte” no sentido de objetos que possuem um valor contemplativo em si mesmos. O seu significado está intimamente ligado ao seu uso, seja ele prático ou ritual. Fora desse uso, eles não têm o mesmo valor. Além disso, “arte” nessas comunidades é a expressão de um grupo de indivíduos com hábitos e crenças comuns. Portanto, não se apresenta como o resultado da expressão de um “eu” particular. Há uma continuidade entre arte e vida que desconhecemos no Ocidente moderno. 

A arte indígena antiga, preservada em museus, como a cerâmica marajoara, feita por populações que viveram na ilha de Marajó (PA) entre 500 e 1600 anos atrás, é hoje reproduzida no artesanato da população local, com vistas a satisfazer uma demanda do mercado turístico. Em contraste, na série Ocre, a artista indígena Anita Ekman se relaciona com esse patrimônio devolvendo o objeto à cultura que o criou, por meio da performance, mas sem eliminar as marcas de aculturação que ele carrega (observe, na fotografia central da imagem abaixo, por exemplo, a presença do arquivo museológico ao fundo).

Anita Ekman, fotografias da série Ocre, 2019, como expostas na 1º Bienal das Amazônia, Belém, Pará. Fonte: 1ª Bienal das Amazônias
Anita Ekman com a pele impressa pelo carimbo em bastão que porta no pescoço, ao lado de uma urna funerária marajoara pertencente ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Edu Simões. Fonte: https://artebrasileiros.com.br/arte/mundo-quase-magico/
Fotografia da série Ocre, 2019, Toca do Salitre, São Raimundo Nonato, Piauí. Foto: Edu Simões. Fonte: sobre_ocre_de_anita_ekman

Além dos artesãos locais, muitos povos indígenas, para sobreviver, produzem artefatos para venda. Com o objetivo de otimizar a produção, passaram a fazer objetos e adereços corporais com materiais industrializados, como miçangas, penas artificiais e corantes sintéticos. Assim, a cultura indígena é dinâmica e seus valores coexistem, não sem conflito, com os valores da cultura ocidental. Do mesmo modo que os materiais industrializados no caso dos artefatos, quando obras de artistas indígenas entram no circuito da arte contemporânea, elas assumem certas condições de existência dentro desse circuito. Por exemplo, do ponto de vista da técnica (pintura, desenho, gravura, arte têxtil, multimeios, fotografia, vídeo, performance etc.) e da apresentação no espaço, suas obras estão muito próximas das de artistas não indígenas. 

A Bienal de São Paulo de 2021, apelidada de “Bienal indígena”, exibiu muitos trabalhos de arte indígena contemporânea brasileira. Contudo, ocorreu no estado mais rico do país, e num dos que menos abriga populações indígenas (só perde para o Sul). Nesse sentido, merece destaque a 1ª Bienal das Amazônias, realizada em 2023, em Belém, no Pará. Intitulada Bubuia: Águas como Fonte de Imaginações e Desejos, trabalhou com o conceito de “dibubuismo” proposto pelo poeta paraense João Paes Loureiro, que traduz, segundo ele, “a convivência inteligente do nativo com o seu meio”. A palavra vem da expressão de bubuia, usada no Norte para dizer "à deriva, no sentido da corrente”. É evidente um esforço curatorial de aproximação do mundo amazônico a partir da ótica do próprio bioma e da relação que a população local estabelece com ele. “Sou do mundo das águas”, afirma a fotógrafa paraense Elza Lima, homenageada pelo evento, “elas sempre nortearam minha vida, levando a enxergar o todo por essa ótica”.

Institucionalização e a barreira da língua

A institucionalização da arte contemporânea indígena – e sua entrada no mainstream (“fluxo principal”) – permite dar voz a esses povos, que cultivam e protegem as florestas há milhares de anos. Permite também que as pessoas se aproximem dessas existências e olhem para a natureza a partir de matrizes epistêmicas diferentes das suas, ou seja, de um conjunto de conhecimentos (que forma subjetividades) alternativo ao ocidental hegemônico. 

Contudo, há uma limitação nesse processo de buscar nessas culturas uma alternativa: a barreira da língua. Falar a língua faz com que a gente entenda o modo de pensar de uma cultura. Quando os portugueses chegaram aqui, em torno de mil línguas diferentes eram faladas pelos nativos. Essa diversidade reduziu-se, hoje, a cerca de 160 línguas. Nos demais países da América Latina ocorreu o mesmo apagamento. 

O artista indígena mexicano Andy Medina imprimiu cartazes com a pergunta, em língua guarani, Mava’etu ndape roayvu kuaai?, que em português significa “Quem é o analfabeto agora?”. Ele escreve a mesma frase também em outras línguas nativas. Quando os cartazes são postos em pilhas dentro de museus para os visitantes levarem para casa, a pergunta – que na verdade afirma algo – se dirige a esse público, majoritariamente, então, à elite financeira e intelectual. A pergunta coloca o leitor na posição subalterna em que, antes, a cultura moderna europeia havia colocado, pela imposição do monolinguismo, a cultura dos nativos do “Novo Mundo”. Assim, o cartaz faz com que quem tenta lê-lo experimente, por um momento, a sensação de ser objeto da violência colonial. Ao mesmo tempo, ele devolve essa violência à sua fonte, pois está dentro do museu, uma instituição que nasce, na Europa, sob o signo do colonialismo.

Andy Medina, cartaz impresso em offset com a frase em guarani: Quem é o analfabeto agora?, distribuído ao público durante a exposição Histórias Indígenas, MASP, 2023. Fonte: catálogo da exposição.

Pareceu-me importante dedicar um artigo inteiro à arte indígena, por conta da posição central dessas populações na luta ambiental, das particularidades de suas manifestações artísticas e também das contradições que estão implicadas em sua institucionalização, na medida em que se constituem, essencialmente, em culturas anticapitalistas. No artigo da próxima semana, que fechará esta trilogia, escreverei sobre o modo como a arte ocidental contemporânea, em especial a gravura, encampou problemáticas ambientais.

Por Luciana Lourenço Paes.

Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
Última atualização
22/3/2024 10:14

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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