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Opinião

Um recorte sobre a trajetória da mulher, de Freud até os dias atuais

Explorando a evolução do papel da mulher desde Freud, abordamos lutas por igualdade e desafios na conciliação de carreira, amor e maternidade.Explorando a evolução do papel da mulher desde Freud, abordamos lutas por igualdade e desafios na conciliação de carreira, amor e maternidade.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Áurea Moneo

Pensando sobre o conhecido aforismo freudiano: “Afinal, o que quer uma mulher?”, nada melhor do que tentar descrever seu papel social, à época de Freud e hoje, para então arriscar decifrar o enigma, se é que podemos falar de forma genérica sobre o tema, sem tomar a mulher uma a uma.  

Freud viveu num período da história, entre os séculos XIX e XX, influenciado pelo iluminismo, onde os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, ainda que postos, seguiam carregados de fortes influências de um patriarcado trabalhoso de ser diluído e que, de certa forma, ainda persiste nos dias de hoje.

Neste contexto, esperava-se que a mulher se preparasse, desde muito cedo, para desempenhar com maestria, a partir do casamento, seu papel como excelente dona de casa, mãe e educadora da prole, num espaço de atuação reduzido ao casamento, procriação e cuidados com os maridos e filhos. Poucas eram aquelas que se destacavam de outra maneira e, quando isto ocorria, era através de funções correlatas: enfermeiras, professoras, cozinheiras, damas de companhia.

O campo da realização profissional era reduto dos homens, com divisão de tarefas bem estabelecida. A eles cabia o papel de provedor da família; a elas, o de dar suporte, em casa, para que eles ficassem tranquilos ao desempenho daquela função.

Assim, fora do casamento, pouco restava para elas. Aliás, durante muito tempo, nem direito à herança elas tinham.

Dentro do casamento, com tantos afazeres e muitos filhos para cuidar, a vida também não parecia ser fácil para um ser desejante de oportunidades, com expectativas em viver momentos agradáveis e dar vazão a seus anseios mais íntimos: a opção se restringia à mudança de cabresto, de um pai, geralmente dominador, para um marido, talvez menos impositivo ou, então, “ficar para titia”.

Fácil imaginar a proliferação do mal-estar naquele tempo, com mulheres histéricas lotando os consultórios médicos em busca de entendimento e cura para seus problemas, a escancarar almas adoecidas (na antiguidade, psiques), presas em corpos que se negavam a respeitar as regras, numa clara desobediência civil.

Evidente que não apenas mulheres eram acometidas de histeria, mas certamente elas predominavam.

Freud se deu conta deste fenômeno entendendo que a solução não seria simplesmente “revirar úteros” – como nos ilustra o filme “Histeria”, uma comédia de 2011 sobre as propriedades da massagem pélvica no comportamento das mulheres – mas “revirar o inconsciente”, dando voz a conteúdos represados.

Mas o universo tem seus caprichos e o mundo contemporâneo foi se desenhando de forma diferente e até então imprevisível a partir das guerras, forçando novas soluções: a forte baixa de homens, cujas vidas se perdiam nos campos de batalhas, foi responsável pela abertura de postos de trabalho direcionados ao universo feminino, impulsionando o ingresso dessas mulheres, até então dedicadas quase que exclusivamente a seus lares, para jornadas de atividades fora de casa.

Para fazer frente a estas mudanças dentro dos lares, até então redutos protegidos, onde o feminino se dedicava ao privado, cabendo aos homens apenas a vida pública, novos hábitos se estabeleceram: forte incentivo ao consumo, formas de proporcionar simplificações no dia a dia compatíveis com um novo estilo de vida envolvendo desafios e oportunidades. Eis o ambiente borbulhante criado pela modernidade, para o qual homens e mulheres precisavam se preparar para enfrentar.

Mas o padrão moral vigente continuava repressor. Mulheres tentando dividir espaços, meio que a fórceps, numa constante busca de lugar ao sol.

É assim que entramos na década de 60, com tentativas de liberação sexual, estimuladas pelo advento dos métodos contraceptivos, em especial a pílula anticoncepcional, que devolve à mulher uma relativa autonomia sobre seu corpo e seus próprios desejos. Ela agora tem outras possibilidades de futuro, para além do casamento e da maternidade. Afinal, ela já pode escolher investir nos estudos, objetivando uma carreira acadêmica ou profissional.

Engana-se, porém, quem entende este movimento como tranquilo. Como se não bastassem a dupla jornada feminina e as diferenças salariais entre os sexos, há que se lidar com a eterna competitividade, tanto nas organizações quanto dentro de casa e com a difícil questão relativa à biologia x maternidade.

Afinal, se o casamento já não é mais visto como algo obrigatório nas relações que se tornam cada vez mais líquidas, a maternidade, para quem sonha gerar seus próprios filhos, ainda tem marcadores temporais importantes. Investir na carreira e deixar a maternidade para depois pode esbarrar neste quesito.

Mais ainda. Investir na maternidade e, paralelamente, na carreira pode trazer, em especial para a mulher, um sentimento de culpa inautêntica (decorrente de idealizações), por não estar tão disponível como gostaria (e como era comum no passado – olha aí nossa herança cultural, cobrando pedágio), com desdobramentos complicados, caso da falta de limites e excesso de indulgência no processo educacional de suas crianças, como forma de reparação pela reiterada ausência.
Como consequência, famílias cada vez menores, por escassez de tempo e outras prioridades ligadas à vida profissional. Outra decorrência: o incremento do mundo pet, em substituição aos filhos, uma forma encontrada para dar vazão ao lado maternal.  

Podemos perceber que, lá trás, a vida da mulher não era fácil por excesso de atribulações, rigidez, cobranças, em especial aquelas exercidas de fora para dentro, com poucas oportunidades de desenvolvimento pessoal a quem almejasse mais do que casamento e maternidade.

E hoje, apesar de maior liberdade de escolha, também não é pacífico este percurso, já que as três dimensões que envolvem a vida da mulher na pós-modernidade – o lado profissional, a relação amorosa e a função materna – não costumam se acoplar de maneira tranquila.

Daí entendermos que a provocação proposta por Freud sobre o que quer uma mulher pode ter muitos desdobramentos, que nem sempre passam pela tríade acima. É na singularidade que encontraremos a resposta, aquela que cada uma consegue bancar, sempre lembrando a velha melodia da eterna insatisfação que nos constitui: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. “A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”.

Última atualização
14/3/2024 17:05
Áurea Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); pós-graduada em Psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em Psicanálise, pelo Instituto Superior de Psicanálise de Brasília. Outras formações acadêmicas: pós-graduada em Marketing, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); pós-graduada em Administração, pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo; graduada em Arquitetura, pelo Mackenzie. Responsável pela gestão organizacional e pedagógica do Centro de Formação em Psicanálise Clínica – Illumen, com sede em São Paulo, desde 2010. Leciona Psicanálise, com notória especialidade, responsável pela preparação psicanalítica de novos alunos e professores do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2001.

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

Um recorte sobre a trajetória da mulher, de Freud até os dias atuais

Explorando a evolução do papel da mulher desde Freud, abordamos lutas por igualdade e desafios na conciliação de carreira, amor e maternidade.Explorando a evolução do papel da mulher desde Freud, abordamos lutas por igualdade e desafios na conciliação de carreira, amor e maternidade.
Vinícius Sgarbe
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Adobe Firefly
Áurea Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); pós-graduada em Psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em Psicanálise, pelo Instituto Superior de Psicanálise de Brasília. Outras formações acadêmicas: pós-graduada em Marketing, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); pós-graduada em Administração, pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo; graduada em Arquitetura, pelo Mackenzie. Responsável pela gestão organizacional e pedagógica do Centro de Formação em Psicanálise Clínica – Illumen, com sede em São Paulo, desde 2010. Leciona Psicanálise, com notória especialidade, responsável pela preparação psicanalítica de novos alunos e professores do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2001.
14/3/2024 17:05
Áurea Moneo

Um recorte sobre a trajetória da mulher, de Freud até os dias atuais

Pensando sobre o conhecido aforismo freudiano: “Afinal, o que quer uma mulher?”, nada melhor do que tentar descrever seu papel social, à época de Freud e hoje, para então arriscar decifrar o enigma, se é que podemos falar de forma genérica sobre o tema, sem tomar a mulher uma a uma.  

Freud viveu num período da história, entre os séculos XIX e XX, influenciado pelo iluminismo, onde os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, ainda que postos, seguiam carregados de fortes influências de um patriarcado trabalhoso de ser diluído e que, de certa forma, ainda persiste nos dias de hoje.

Neste contexto, esperava-se que a mulher se preparasse, desde muito cedo, para desempenhar com maestria, a partir do casamento, seu papel como excelente dona de casa, mãe e educadora da prole, num espaço de atuação reduzido ao casamento, procriação e cuidados com os maridos e filhos. Poucas eram aquelas que se destacavam de outra maneira e, quando isto ocorria, era através de funções correlatas: enfermeiras, professoras, cozinheiras, damas de companhia.

O campo da realização profissional era reduto dos homens, com divisão de tarefas bem estabelecida. A eles cabia o papel de provedor da família; a elas, o de dar suporte, em casa, para que eles ficassem tranquilos ao desempenho daquela função.

Assim, fora do casamento, pouco restava para elas. Aliás, durante muito tempo, nem direito à herança elas tinham.

Dentro do casamento, com tantos afazeres e muitos filhos para cuidar, a vida também não parecia ser fácil para um ser desejante de oportunidades, com expectativas em viver momentos agradáveis e dar vazão a seus anseios mais íntimos: a opção se restringia à mudança de cabresto, de um pai, geralmente dominador, para um marido, talvez menos impositivo ou, então, “ficar para titia”.

Fácil imaginar a proliferação do mal-estar naquele tempo, com mulheres histéricas lotando os consultórios médicos em busca de entendimento e cura para seus problemas, a escancarar almas adoecidas (na antiguidade, psiques), presas em corpos que se negavam a respeitar as regras, numa clara desobediência civil.

Evidente que não apenas mulheres eram acometidas de histeria, mas certamente elas predominavam.

Freud se deu conta deste fenômeno entendendo que a solução não seria simplesmente “revirar úteros” – como nos ilustra o filme “Histeria”, uma comédia de 2011 sobre as propriedades da massagem pélvica no comportamento das mulheres – mas “revirar o inconsciente”, dando voz a conteúdos represados.

Mas o universo tem seus caprichos e o mundo contemporâneo foi se desenhando de forma diferente e até então imprevisível a partir das guerras, forçando novas soluções: a forte baixa de homens, cujas vidas se perdiam nos campos de batalhas, foi responsável pela abertura de postos de trabalho direcionados ao universo feminino, impulsionando o ingresso dessas mulheres, até então dedicadas quase que exclusivamente a seus lares, para jornadas de atividades fora de casa.

Para fazer frente a estas mudanças dentro dos lares, até então redutos protegidos, onde o feminino se dedicava ao privado, cabendo aos homens apenas a vida pública, novos hábitos se estabeleceram: forte incentivo ao consumo, formas de proporcionar simplificações no dia a dia compatíveis com um novo estilo de vida envolvendo desafios e oportunidades. Eis o ambiente borbulhante criado pela modernidade, para o qual homens e mulheres precisavam se preparar para enfrentar.

Mas o padrão moral vigente continuava repressor. Mulheres tentando dividir espaços, meio que a fórceps, numa constante busca de lugar ao sol.

É assim que entramos na década de 60, com tentativas de liberação sexual, estimuladas pelo advento dos métodos contraceptivos, em especial a pílula anticoncepcional, que devolve à mulher uma relativa autonomia sobre seu corpo e seus próprios desejos. Ela agora tem outras possibilidades de futuro, para além do casamento e da maternidade. Afinal, ela já pode escolher investir nos estudos, objetivando uma carreira acadêmica ou profissional.

Engana-se, porém, quem entende este movimento como tranquilo. Como se não bastassem a dupla jornada feminina e as diferenças salariais entre os sexos, há que se lidar com a eterna competitividade, tanto nas organizações quanto dentro de casa e com a difícil questão relativa à biologia x maternidade.

Afinal, se o casamento já não é mais visto como algo obrigatório nas relações que se tornam cada vez mais líquidas, a maternidade, para quem sonha gerar seus próprios filhos, ainda tem marcadores temporais importantes. Investir na carreira e deixar a maternidade para depois pode esbarrar neste quesito.

Mais ainda. Investir na maternidade e, paralelamente, na carreira pode trazer, em especial para a mulher, um sentimento de culpa inautêntica (decorrente de idealizações), por não estar tão disponível como gostaria (e como era comum no passado – olha aí nossa herança cultural, cobrando pedágio), com desdobramentos complicados, caso da falta de limites e excesso de indulgência no processo educacional de suas crianças, como forma de reparação pela reiterada ausência.
Como consequência, famílias cada vez menores, por escassez de tempo e outras prioridades ligadas à vida profissional. Outra decorrência: o incremento do mundo pet, em substituição aos filhos, uma forma encontrada para dar vazão ao lado maternal.  

Podemos perceber que, lá trás, a vida da mulher não era fácil por excesso de atribulações, rigidez, cobranças, em especial aquelas exercidas de fora para dentro, com poucas oportunidades de desenvolvimento pessoal a quem almejasse mais do que casamento e maternidade.

E hoje, apesar de maior liberdade de escolha, também não é pacífico este percurso, já que as três dimensões que envolvem a vida da mulher na pós-modernidade – o lado profissional, a relação amorosa e a função materna – não costumam se acoplar de maneira tranquila.

Daí entendermos que a provocação proposta por Freud sobre o que quer uma mulher pode ter muitos desdobramentos, que nem sempre passam pela tríade acima. É na singularidade que encontraremos a resposta, aquela que cada uma consegue bancar, sempre lembrando a velha melodia da eterna insatisfação que nos constitui: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. “A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”.

Áurea Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); pós-graduada em Psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em Psicanálise, pelo Instituto Superior de Psicanálise de Brasília. Outras formações acadêmicas: pós-graduada em Marketing, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); pós-graduada em Administração, pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo; graduada em Arquitetura, pelo Mackenzie. Responsável pela gestão organizacional e pedagógica do Centro de Formação em Psicanálise Clínica – Illumen, com sede em São Paulo, desde 2010. Leciona Psicanálise, com notória especialidade, responsável pela preparação psicanalítica de novos alunos e professores do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2001.
Última atualização
14/3/2024 17:05

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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