Corrida para a Prefeitura de Curitiba

Opinião

Maria, da invisibilidade ao protagonismo em sala de aula

Uma história de acolhimento e transformação no ensino prisional, marcada pela chegada de Maria e o poder da educação.Uma história de acolhimento e transformação no ensino prisional, marcada pela chegada de Maria e o poder da educação.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Jane Hir

<span class="abre-texto">Eu estava ajeitando o meu material de trabalho</span> quando ela chegou na sala, anunciando: "Professora, eu vim pra escola mas não sei nada. Eu sou especial. Não sei ler... não sei nada!". Olhei curiosa para a voz forte que se apresentava assim, sem aparente humilhação ou timidez. Ela estava ali, inteira, sem máscaras. Uma mulher negra, bonita e alegre, nos mostrando o que sabia de si. Sim, eu pensei, de imediato, você é especial!

Curiosa, me aproximei dela. Fiz algumas perguntas às quais ela respondia rindo: "Não sei, professora". Mas sabia que seu sobrenome era do avô porque ela não conhecia o pai. E ao contar isso, ela soletrou devagar seu sobrenome e o fez com a reverência de quem ostenta um troféu.

Os anos de docência, a minha curiosidade acerca das singularidades humanas e as minhas leituras sobre a Comunicação Não-Violenta e neurociência me ensinaram que a melhor estratégia e, ouso dizer, a única forma efetiva de comunicação se traduz numa palavra: acolher.

Eu sou professora das séries iniciais no sistema prisional há dez anos e a convivência com homens e mulheres à margem da sociedade muito me tem ensinado sobre os limites e possibilidades da grande incógnita que é o ser humano…

Aquele dia em que Maria (vou chamá-la assim) entrou na sala, se apresentando de forma tão desnuda de expectativas, eu estava trabalhando com a turma no projeto de um jogral para uma apresentação nas celebrações do Dia Internacional da Mulher, e então, convidei Maria para ouvir o poema.

A cada leitura feita pelas alunas, eu observava Maria. O texto dramático de Ana Trento, que expõe de forma clara as opressões vividas pela mulher, calou fundo em Maria. Algumas lembranças vieram fortes e ela interrompeu a fala das colegas: completou, discordou, aplaudiu com força!

Foi bonito de ver que as outras mulheres também acolheram Maria. E Maria, que não sabia nada, acrescentou vida às nossas discussões daquela manhã. Ela se emocionou quando o aborto foi mencionado e deu sugestões para as colegas de como se movimentar enquanto declamavam.

Perguntei a ela se gostaria de participar do jogral, ela disse que sim e escolheu dois versos que se repetiam três vezes no poema. Durante o ensaio da sua fala, ela acrescentou palavras e inflexões que a sua emoção ditava.

Sim. Maria é especial. Ela me abraça várias vezes ao dia. Ela ri o riso puro das crianças e desenha letras que não conhece com profunda seriedade. Ela me olha com amor sem nenhum pejo. Ela diz que quer aprender a ler e, enquanto isso, nos acolhe e ensina a acolher.

Acolher o outro se assemelha a abrir a porta da nossa casa ao viajante, enquanto ao mesmo tempo, batemos à porta dele, perguntando: "Posso entrar?". Acolher é dar de beber da água fresca do reconhecimento e na mesma caneca também beber.

Toda relação verdadeira se efetiva na acolhida. É a acolhida que nos permite adentrar ao outro, conhecer seus mistérios, sua forma de ser e estar no mundo e, ao mesmo tempo, é ela que nos oferece o descanso dos inúmeros protocolos de convivência, na sua grande maioria, estéreis.

Acredito que a acolhida se presentifica nas quatro dimensões da escuta descritas por Dunker (2021): acolher o que o outro disse, cuidar do que se disse, permitir-se ser quem se é e compartilhar a experiência vivida.

Na acolhida, olhamos além dos rótulos, dos papéis e das circunstâncias. Na acolhida, nos humanizamos… Somos infinitos.

Última atualização
18/3/2024 15:49
Jane Hir
Mestra em Educação (UFPR); Professora de língua portuguesa; Especialista em Educação de Jovens e Adultos; Facilitadora de Práticas Restaurativas — Eseje (2017) e SCJR/Coonozco (2018); Especialista em Práticas Restaurativas, com enfoque em Direitos Humanos (PUCPR); Especialista em Neurociências, Psicologia Positiva e Mindfulness (PUCPR).

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

Maria, da invisibilidade ao protagonismo em sala de aula

Uma história de acolhimento e transformação no ensino prisional, marcada pela chegada de Maria e o poder da educação.Uma história de acolhimento e transformação no ensino prisional, marcada pela chegada de Maria e o poder da educação.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Jane Hir
Mestra em Educação (UFPR); Professora de língua portuguesa; Especialista em Educação de Jovens e Adultos; Facilitadora de Práticas Restaurativas — Eseje (2017) e SCJR/Coonozco (2018); Especialista em Práticas Restaurativas, com enfoque em Direitos Humanos (PUCPR); Especialista em Neurociências, Psicologia Positiva e Mindfulness (PUCPR).
16/3/2024 14:02
Jane Hir

Maria, da invisibilidade ao protagonismo em sala de aula

<span class="abre-texto">Eu estava ajeitando o meu material de trabalho</span> quando ela chegou na sala, anunciando: "Professora, eu vim pra escola mas não sei nada. Eu sou especial. Não sei ler... não sei nada!". Olhei curiosa para a voz forte que se apresentava assim, sem aparente humilhação ou timidez. Ela estava ali, inteira, sem máscaras. Uma mulher negra, bonita e alegre, nos mostrando o que sabia de si. Sim, eu pensei, de imediato, você é especial!

Curiosa, me aproximei dela. Fiz algumas perguntas às quais ela respondia rindo: "Não sei, professora". Mas sabia que seu sobrenome era do avô porque ela não conhecia o pai. E ao contar isso, ela soletrou devagar seu sobrenome e o fez com a reverência de quem ostenta um troféu.

Os anos de docência, a minha curiosidade acerca das singularidades humanas e as minhas leituras sobre a Comunicação Não-Violenta e neurociência me ensinaram que a melhor estratégia e, ouso dizer, a única forma efetiva de comunicação se traduz numa palavra: acolher.

Eu sou professora das séries iniciais no sistema prisional há dez anos e a convivência com homens e mulheres à margem da sociedade muito me tem ensinado sobre os limites e possibilidades da grande incógnita que é o ser humano…

Aquele dia em que Maria (vou chamá-la assim) entrou na sala, se apresentando de forma tão desnuda de expectativas, eu estava trabalhando com a turma no projeto de um jogral para uma apresentação nas celebrações do Dia Internacional da Mulher, e então, convidei Maria para ouvir o poema.

A cada leitura feita pelas alunas, eu observava Maria. O texto dramático de Ana Trento, que expõe de forma clara as opressões vividas pela mulher, calou fundo em Maria. Algumas lembranças vieram fortes e ela interrompeu a fala das colegas: completou, discordou, aplaudiu com força!

Foi bonito de ver que as outras mulheres também acolheram Maria. E Maria, que não sabia nada, acrescentou vida às nossas discussões daquela manhã. Ela se emocionou quando o aborto foi mencionado e deu sugestões para as colegas de como se movimentar enquanto declamavam.

Perguntei a ela se gostaria de participar do jogral, ela disse que sim e escolheu dois versos que se repetiam três vezes no poema. Durante o ensaio da sua fala, ela acrescentou palavras e inflexões que a sua emoção ditava.

Sim. Maria é especial. Ela me abraça várias vezes ao dia. Ela ri o riso puro das crianças e desenha letras que não conhece com profunda seriedade. Ela me olha com amor sem nenhum pejo. Ela diz que quer aprender a ler e, enquanto isso, nos acolhe e ensina a acolher.

Acolher o outro se assemelha a abrir a porta da nossa casa ao viajante, enquanto ao mesmo tempo, batemos à porta dele, perguntando: "Posso entrar?". Acolher é dar de beber da água fresca do reconhecimento e na mesma caneca também beber.

Toda relação verdadeira se efetiva na acolhida. É a acolhida que nos permite adentrar ao outro, conhecer seus mistérios, sua forma de ser e estar no mundo e, ao mesmo tempo, é ela que nos oferece o descanso dos inúmeros protocolos de convivência, na sua grande maioria, estéreis.

Acredito que a acolhida se presentifica nas quatro dimensões da escuta descritas por Dunker (2021): acolher o que o outro disse, cuidar do que se disse, permitir-se ser quem se é e compartilhar a experiência vivida.

Na acolhida, olhamos além dos rótulos, dos papéis e das circunstâncias. Na acolhida, nos humanizamos… Somos infinitos.

Jane Hir
Mestra em Educação (UFPR); Professora de língua portuguesa; Especialista em Educação de Jovens e Adultos; Facilitadora de Práticas Restaurativas — Eseje (2017) e SCJR/Coonozco (2018); Especialista em Práticas Restaurativas, com enfoque em Direitos Humanos (PUCPR); Especialista em Neurociências, Psicologia Positiva e Mindfulness (PUCPR).
Última atualização
18/3/2024 15:49

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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