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Opinião

'E ela não é uma mulher?'

Após 40 anos da história de Maria da Penha, Brasil enfrenta desafios persistentes na proteção contra violência de gênero, especialmente para mulheres trans.Após 40 anos da história de Maria da Penha, Brasil enfrenta desafios persistentes na proteção contra violência de gênero, especialmente para mulheres trans.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Luana dos Santos

<span class="abre-texto">Em 1983, enquanto dormia, Maria da Penha</span> recebeu um tiro nas costas, disparado por seu marido. A agressão a deixou paraplégica. Alguns meses depois, foi mantida em cárcere privado e foi vítima de nova tentativa de feminicídio. Dessa vez, o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Mesmo processado e julgado, Marco Antonio Heredia Viveros, o agressor, permaneceu em liberdade.

Em 2001, mais de 15 anos após o primeiro crime, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente por negligência no caso Maria da Penha, recebendo recomendação para que adotasse medidas eficazes de combate à violência doméstica. No ano de 2006, finalmente, foi criada a hoje conhecida Lei Maria da Penha, que traz diversos mecanismos para coibir a violência contra a mulher.

Já no ano de 2015, o assassinato de mulheres por razões associadas à violência doméstica e familiar ou ao menosprezo à condição de mulher (feminicídio) passou a ser punido de forma mais severa. A pena pelo cometimento de um homicídio comum pode variar entre 06 e 20 anos de reclusão, enquanto a pena pela prática de feminicídio varia entre 12 e 30 anos. Embora o sistema não seja perfeito, representa um grande avanço na proteção aos direitos das mulheres, além de trazer à tona importantes discussões sobre a realidade das vítimas de violência de gênero.

A história demonstra que, apesar de proporções diversas, mulheres negras ou brancas, em relacionamentos heterossexuais ou homossexuais, pobres ou ricas, podem ser vítimas de violência. Um exemplo é o recente caso de agressão denunciado pela famosa apresentadora Ana Hickmann.

Em virtude de longos anos de construção da inferiorização da mulher, independentemente do contexto em estejam que inseridas, todas as mulheres são vítimas em potencial da violência de gênero. Por isso, o sistema de proteção deve ser pensado e estruturado de forma que seja capaz de atender às necessidades de todas.

Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a necessidade de aplicação da Lei Maria da Penha aos casos em que a vítima de violência doméstica seja uma mulher trans. Além de tardia, a decisão do STJ, por si só, é ineficiente para assegurar a integridade dessas mulheres. Para que a proteção oferecida pelo Estado seja eficaz, é preciso compreender que as mulheres estão inseridas em diferentes recortes sociais, raciais e de gênero. E antes de tudo, é preciso que a mulher seja vista como tal.

No livro “E eu não sou uma mulher?”, a autora Bell Hooks fala sobre as diferentes formas de violação aos direitos das mulheres. Enquanto a mulher branca foi reduzida à condição de mãe e de cuidadora do lar, as mulheres negras escravizadas eram constantemente estupradas por seus senhores. Enquanto a mulher branca lutava pelo direito de não ser apenas uma dona de casa, a mulher negra escravizada ansiava pelo dia em que seu corpo deixaria de ser subjugado, pelo dia em que fosse vista como mulher e não como objeto de dominação.

Isso não significa que mulheres brancas não sejam vítimas do crime de estupro, mas que, a depender do recorte socio-racial, as formas de violação aos direitos das mulheres atingem proporções e configurações diversas, na medida em que são vistas como menos mulher. Hoje, o centro dessa condição de “não mulher” é ocupado pelas mulheres trans.

Há cerca de duas semanas, três mulheres foram agredidas no Rio de Janeiro por um grupo de mais de 15 homens, incluindo os seguranças do estabelecimento em que se encontravam as vítimas — dentre elas, duas mulheres trans. Segundo o relato de uma das vítimas, em meio às agressões os homens diziam “pode bater que é tudo homem”, “eu pensava que era mulher, se não já tinha batido antes”. Para a violência desmedida, uma justificativa: a condição de “não mulher”.

Como denuncia a deputada federal Erika Hilton, a sociedade ainda enxerga a mulher trans como menos mulher, e ao enxergá-la como menos mulher, também a enxerga como menos cidadã, cidadã que não merece proteção, cidadã que não pode estar nos esportes ou receber prêmios em festivais.

Há 15 anos o Brasil lidera o ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. Enquanto a expectativa de vida da população em geral ultrapassa os 70 anos, a expectativa de vida de uma mulher trans é de apenas 35 anos. Para que essa situação mude, o ordenamento jurídico precisa contemplar mecanismos específicos voltados para a proteção de mulheres trans. Mecanismos que considerem o fator transfobia como determinante para a violação diária à sua existência.

O que se vê, no entanto, é um país que, após mais de 40 anos, nada aprendeu com Maria da Penha. Quantos tiros nas costas e quantas eletrocuções são necessárias para que uma mulher seja vista?

Última atualização
12/2/2024 16:51
Luana dos Santos
Bacharela em direito. Pós-graduanda em direitos humanos.

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

'E ela não é uma mulher?'

Após 40 anos da história de Maria da Penha, Brasil enfrenta desafios persistentes na proteção contra violência de gênero, especialmente para mulheres trans.Após 40 anos da história de Maria da Penha, Brasil enfrenta desafios persistentes na proteção contra violência de gênero, especialmente para mulheres trans.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Luana dos Santos
Bacharela em direito. Pós-graduanda em direitos humanos.
5/2/2024 10:21
Luana dos Santos

Reconhecimento capenga leva à violência contra mulheres trans

<span class="abre-texto">Em 1983, enquanto dormia, Maria da Penha</span> recebeu um tiro nas costas, disparado por seu marido. A agressão a deixou paraplégica. Alguns meses depois, foi mantida em cárcere privado e foi vítima de nova tentativa de feminicídio. Dessa vez, o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Mesmo processado e julgado, Marco Antonio Heredia Viveros, o agressor, permaneceu em liberdade.

Em 2001, mais de 15 anos após o primeiro crime, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente por negligência no caso Maria da Penha, recebendo recomendação para que adotasse medidas eficazes de combate à violência doméstica. No ano de 2006, finalmente, foi criada a hoje conhecida Lei Maria da Penha, que traz diversos mecanismos para coibir a violência contra a mulher.

Já no ano de 2015, o assassinato de mulheres por razões associadas à violência doméstica e familiar ou ao menosprezo à condição de mulher (feminicídio) passou a ser punido de forma mais severa. A pena pelo cometimento de um homicídio comum pode variar entre 06 e 20 anos de reclusão, enquanto a pena pela prática de feminicídio varia entre 12 e 30 anos. Embora o sistema não seja perfeito, representa um grande avanço na proteção aos direitos das mulheres, além de trazer à tona importantes discussões sobre a realidade das vítimas de violência de gênero.

A história demonstra que, apesar de proporções diversas, mulheres negras ou brancas, em relacionamentos heterossexuais ou homossexuais, pobres ou ricas, podem ser vítimas de violência. Um exemplo é o recente caso de agressão denunciado pela famosa apresentadora Ana Hickmann.

Em virtude de longos anos de construção da inferiorização da mulher, independentemente do contexto em estejam que inseridas, todas as mulheres são vítimas em potencial da violência de gênero. Por isso, o sistema de proteção deve ser pensado e estruturado de forma que seja capaz de atender às necessidades de todas.

Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a necessidade de aplicação da Lei Maria da Penha aos casos em que a vítima de violência doméstica seja uma mulher trans. Além de tardia, a decisão do STJ, por si só, é ineficiente para assegurar a integridade dessas mulheres. Para que a proteção oferecida pelo Estado seja eficaz, é preciso compreender que as mulheres estão inseridas em diferentes recortes sociais, raciais e de gênero. E antes de tudo, é preciso que a mulher seja vista como tal.

No livro “E eu não sou uma mulher?”, a autora Bell Hooks fala sobre as diferentes formas de violação aos direitos das mulheres. Enquanto a mulher branca foi reduzida à condição de mãe e de cuidadora do lar, as mulheres negras escravizadas eram constantemente estupradas por seus senhores. Enquanto a mulher branca lutava pelo direito de não ser apenas uma dona de casa, a mulher negra escravizada ansiava pelo dia em que seu corpo deixaria de ser subjugado, pelo dia em que fosse vista como mulher e não como objeto de dominação.

Isso não significa que mulheres brancas não sejam vítimas do crime de estupro, mas que, a depender do recorte socio-racial, as formas de violação aos direitos das mulheres atingem proporções e configurações diversas, na medida em que são vistas como menos mulher. Hoje, o centro dessa condição de “não mulher” é ocupado pelas mulheres trans.

Há cerca de duas semanas, três mulheres foram agredidas no Rio de Janeiro por um grupo de mais de 15 homens, incluindo os seguranças do estabelecimento em que se encontravam as vítimas — dentre elas, duas mulheres trans. Segundo o relato de uma das vítimas, em meio às agressões os homens diziam “pode bater que é tudo homem”, “eu pensava que era mulher, se não já tinha batido antes”. Para a violência desmedida, uma justificativa: a condição de “não mulher”.

Como denuncia a deputada federal Erika Hilton, a sociedade ainda enxerga a mulher trans como menos mulher, e ao enxergá-la como menos mulher, também a enxerga como menos cidadã, cidadã que não merece proteção, cidadã que não pode estar nos esportes ou receber prêmios em festivais.

Há 15 anos o Brasil lidera o ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. Enquanto a expectativa de vida da população em geral ultrapassa os 70 anos, a expectativa de vida de uma mulher trans é de apenas 35 anos. Para que essa situação mude, o ordenamento jurídico precisa contemplar mecanismos específicos voltados para a proteção de mulheres trans. Mecanismos que considerem o fator transfobia como determinante para a violação diária à sua existência.

O que se vê, no entanto, é um país que, após mais de 40 anos, nada aprendeu com Maria da Penha. Quantos tiros nas costas e quantas eletrocuções são necessárias para que uma mulher seja vista?

Luana dos Santos
Bacharela em direito. Pós-graduanda em direitos humanos.
Última atualização
12/2/2024 16:51

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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