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Opinião

Francisco de Goya em Levantes de Georges Didi-Huberman

Obras de Francisco de Goya na exposição Levantes, organizada por Georges Didi-Huberman.Obras de Francisco de Goya na exposição Levantes, organizada por Georges Didi-Huberman.
Divulgação
/
Gracon

Em 2016 o historiador francês de arte Georges Didi-Huberman organizou a exposição “Soulèvements” na Galeria Nacional do Jeu de Paume, em Paris. Em 2018 chegou ao Brasil no Sesc Pompeia em São Paulo com a tradução de “Levantes”, que reuniu aproximadamente trezentas obras, entre elas, filmes, manuscritos, pinturas e gravuras do século XVIII até a atualidade. O largo conjunto de imagens coletadas pelo historiador têm como tema comum as emoções coletivas e os momentos de turbulência e distúrbio social.

“Levantes” baseia-se no amplo trabalho teórico de Didi-Huberman e nas suas reflexões sobre a imagem desenvolvidas desde a década de 1980. Porém, não se trata somente de uma seleção de imagens de levantes. Para o historiador, os levantes surgem antes da profundidade do inconsciente e de um tempo de memória. As imagens são dispostas em um exercício de montagem. Há também uma composição entre imagem e política, mostrando que a arte não gera um “prazer desinteressado” kantiano, tampouco são inofensivas e feitas para serem um “estímulo retiniano”, como diria Duchamp.

Nas obras de Didi-Huberman é frequente nos depararmos com as citações das obras de Francisco de Goya (1746-1828). Com “Levantes” não seria diferente. O historiador escolheu uma gravura de cada uma das séries mais famosas do artista espanhol: Los Caprichos (1799), Los Disparates (1815-1824) e Desastres de la Guerra (1810-1815), os conjuntos  de  gravuras que  produzem  “o  frontão  da  nossa modernidade” (Didi-Huberman, 2011. p.2). Na exposição, as gravuras fazem parte da sessão “E se a imaginação erguesse montanhas?”

Francisco de Goya y Lucientes. Placa 59 de "Los Caprichos": Y aun no se van! 1799. Gravura água tinta e buril. 29,4 x 21 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque.

Los Caprichos é uma série de 80 gravuras que satirizam a sociedade espanhola no fim do século XVIII com especial desprezo e zombaria à nobreza. Pode-se dividir Los Caprichos em dois grandes grupos: um mais satírico, em relação ao comportamento da sociedade espanhola e outro mais fantástico. A gravura escolhida por Didi-Huberman é a de número 59, com a legenda que diz: “Y aun no se van!”, algo como “E eles não vão embora!”. O homem esquelético segura com a pouca força que lhe resta uma enorme e pesada laje que parece que vai lhe esmagar a qualquer instante. Atrás dele, a mulher olha para a situação assustada, enquanto outros sujeitos estão atrás e agachados, semelhantes aos seres das pinturas que ele realizou enquanto morava na Quinta del Sordo. É como se esse homem, próximo de morrer, estivesse se esforçando para evitar o seu destino – a morte ou a loucura.

Francisco de Goya y Lucientes. Disparate feminino. 1815 - 1819. Gravura, água-forte, água-tinta e ponta seca. 252 x 364 mm. Museu do Prado, Madri.

Foi na Quinta del Sordo onde Goya produziu a série “Los Disparates”, também conhecida como “Os Provérbios”. Gravuras enigmáticas e com profusas interpretações, muitos críticos vêem a série como uma continuidade dos Caprichos e um prólogo dos Desastres da Guerra. São gravuras fantásticas, grotescas e ilógicas. Didi-Huberman selecionou a primeira gravura dos Disparates, o Disparate Feminino. Seis mulheres seguram um largo tecido fazendo duas bonecas pularem. Porém, escondidos na sombra desse lençol, vemos a mancha bizarra da forma de um homem e de um burro.

Francisco de Goya y Lucientes. Placa 7 de " Los Desastres de la Guerra": Que valor! 1810. Gravura, água-tinta, ponta seca e buril. 25,2 x 34,3 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque.

A figura feminina também aparece na sétima gravura dos Desastres de la Guerra. Com a legenda “Que valor!” vemos uma mulher de costas preparando um canhão. Aos seus pés, corpos estirados ao chão, e não vemos o rosto ou as feições de nenhum dos personagens da cena, bastante diferente da maior parte das gravuras de Goya, onde vemos rostos completamente expressivos e muitas vezes amedrontadores. A mulher pode ser Agustina de Aragón que defendeu o cerco de Zaragoza dos franceses ou Manuela Sancho y Bonafonte, que também defendeu a cidade nas mesmas circunstâncias. A composição triangular da gravura e a posição da mulher é semelhante a algumas obras do século XIX, como a Balsada Medusa de Géricault ou a Liberdade guiando o povo de Delacroix.

O exercício de imaginação para Didi-Huberman é originado em Goya. Algo como uma linguagem universal que serviria para absolutamente tudo, do melhor ao pior. É a imaginação que produz estes monstros impossíveis, e é a imaginação com a razão que produz os vícios e as extravagâncias de uma sociedade civil adoecida – e a imaginação, ao contrário da razão, é infinita. E esta é a questão chave que faz Didi-Huberman convocar Goya a ponderar sobre a imaginação: a produção de uma crítica filosófica do mundo (Didi-Huberman, 2010. p.89).

Goya ao lado das fotografias de guerras, revoluções e ações em comunidade serve-nos enquanto um lembrete de que a arte tem em si o papel do luto e da memória dos sofrimentos do mundo, deque arte e prazer não são sinônimos. A política das imagens de Goya persiste nas mazelas contemporâneas repletas de vícios. Goya em disposição das imagens do presente nos apresenta uma forma de se pensar e de se fazer uma máquina de guerra de memória a partir das imagens, que carregam consigo as energias do passado e do presente em uma montagem entre os elementos mais díspares.

Por Isabela Fuchs.

Última atualização
12/4/2024 11:23
Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

Francisco de Goya em Levantes de Georges Didi-Huberman

Obras de Francisco de Goya na exposição Levantes, organizada por Georges Didi-Huberman.Obras de Francisco de Goya na exposição Levantes, organizada por Georges Didi-Huberman.
Divulgação
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Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
12/4/2024 10:56
Gracon

Francisco de Goya em Levantes de Georges Didi-Huberman

Em 2016 o historiador francês de arte Georges Didi-Huberman organizou a exposição “Soulèvements” na Galeria Nacional do Jeu de Paume, em Paris. Em 2018 chegou ao Brasil no Sesc Pompeia em São Paulo com a tradução de “Levantes”, que reuniu aproximadamente trezentas obras, entre elas, filmes, manuscritos, pinturas e gravuras do século XVIII até a atualidade. O largo conjunto de imagens coletadas pelo historiador têm como tema comum as emoções coletivas e os momentos de turbulência e distúrbio social.

“Levantes” baseia-se no amplo trabalho teórico de Didi-Huberman e nas suas reflexões sobre a imagem desenvolvidas desde a década de 1980. Porém, não se trata somente de uma seleção de imagens de levantes. Para o historiador, os levantes surgem antes da profundidade do inconsciente e de um tempo de memória. As imagens são dispostas em um exercício de montagem. Há também uma composição entre imagem e política, mostrando que a arte não gera um “prazer desinteressado” kantiano, tampouco são inofensivas e feitas para serem um “estímulo retiniano”, como diria Duchamp.

Nas obras de Didi-Huberman é frequente nos depararmos com as citações das obras de Francisco de Goya (1746-1828). Com “Levantes” não seria diferente. O historiador escolheu uma gravura de cada uma das séries mais famosas do artista espanhol: Los Caprichos (1799), Los Disparates (1815-1824) e Desastres de la Guerra (1810-1815), os conjuntos  de  gravuras que  produzem  “o  frontão  da  nossa modernidade” (Didi-Huberman, 2011. p.2). Na exposição, as gravuras fazem parte da sessão “E se a imaginação erguesse montanhas?”

Francisco de Goya y Lucientes. Placa 59 de "Los Caprichos": Y aun no se van! 1799. Gravura água tinta e buril. 29,4 x 21 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque.

Los Caprichos é uma série de 80 gravuras que satirizam a sociedade espanhola no fim do século XVIII com especial desprezo e zombaria à nobreza. Pode-se dividir Los Caprichos em dois grandes grupos: um mais satírico, em relação ao comportamento da sociedade espanhola e outro mais fantástico. A gravura escolhida por Didi-Huberman é a de número 59, com a legenda que diz: “Y aun no se van!”, algo como “E eles não vão embora!”. O homem esquelético segura com a pouca força que lhe resta uma enorme e pesada laje que parece que vai lhe esmagar a qualquer instante. Atrás dele, a mulher olha para a situação assustada, enquanto outros sujeitos estão atrás e agachados, semelhantes aos seres das pinturas que ele realizou enquanto morava na Quinta del Sordo. É como se esse homem, próximo de morrer, estivesse se esforçando para evitar o seu destino – a morte ou a loucura.

Francisco de Goya y Lucientes. Disparate feminino. 1815 - 1819. Gravura, água-forte, água-tinta e ponta seca. 252 x 364 mm. Museu do Prado, Madri.

Foi na Quinta del Sordo onde Goya produziu a série “Los Disparates”, também conhecida como “Os Provérbios”. Gravuras enigmáticas e com profusas interpretações, muitos críticos vêem a série como uma continuidade dos Caprichos e um prólogo dos Desastres da Guerra. São gravuras fantásticas, grotescas e ilógicas. Didi-Huberman selecionou a primeira gravura dos Disparates, o Disparate Feminino. Seis mulheres seguram um largo tecido fazendo duas bonecas pularem. Porém, escondidos na sombra desse lençol, vemos a mancha bizarra da forma de um homem e de um burro.

Francisco de Goya y Lucientes. Placa 7 de " Los Desastres de la Guerra": Que valor! 1810. Gravura, água-tinta, ponta seca e buril. 25,2 x 34,3 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque.

A figura feminina também aparece na sétima gravura dos Desastres de la Guerra. Com a legenda “Que valor!” vemos uma mulher de costas preparando um canhão. Aos seus pés, corpos estirados ao chão, e não vemos o rosto ou as feições de nenhum dos personagens da cena, bastante diferente da maior parte das gravuras de Goya, onde vemos rostos completamente expressivos e muitas vezes amedrontadores. A mulher pode ser Agustina de Aragón que defendeu o cerco de Zaragoza dos franceses ou Manuela Sancho y Bonafonte, que também defendeu a cidade nas mesmas circunstâncias. A composição triangular da gravura e a posição da mulher é semelhante a algumas obras do século XIX, como a Balsada Medusa de Géricault ou a Liberdade guiando o povo de Delacroix.

O exercício de imaginação para Didi-Huberman é originado em Goya. Algo como uma linguagem universal que serviria para absolutamente tudo, do melhor ao pior. É a imaginação que produz estes monstros impossíveis, e é a imaginação com a razão que produz os vícios e as extravagâncias de uma sociedade civil adoecida – e a imaginação, ao contrário da razão, é infinita. E esta é a questão chave que faz Didi-Huberman convocar Goya a ponderar sobre a imaginação: a produção de uma crítica filosófica do mundo (Didi-Huberman, 2010. p.89).

Goya ao lado das fotografias de guerras, revoluções e ações em comunidade serve-nos enquanto um lembrete de que a arte tem em si o papel do luto e da memória dos sofrimentos do mundo, deque arte e prazer não são sinônimos. A política das imagens de Goya persiste nas mazelas contemporâneas repletas de vícios. Goya em disposição das imagens do presente nos apresenta uma forma de se pensar e de se fazer uma máquina de guerra de memória a partir das imagens, que carregam consigo as energias do passado e do presente em uma montagem entre os elementos mais díspares.

Por Isabela Fuchs.

Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
Última atualização
12/4/2024 11:23

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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