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Opinião

E o monstro ainda mora aqui dentro: uma distinção sobre medo e fobia

Explorando a diferença entre medo e fobia na psicanálise, um guia para entender como cada um afeta a saúde mental e comportamento.Explorando a diferença entre medo e fobia na psicanálise, um guia para entender como cada um afeta a saúde mental e comportamento.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Marta Moneo

É comum a aparição, no consultório, de questões vinculadas a estados de angústia permeados por sensações de insegurança diante de objetos, sejam eles reais ou imaginários – para a psicanálise, objeto se refere a tudo que está fora do sujeito, em seu entorno, como pessoas, coisas e sistemas (profissional, familiar, de ensino, entretenimento etc.).

Tal vulnerabilidade também tende a ocorrer frente a conteúdos de repercussão interna, como doenças ou vivências conflitivas: lutos, traumas, pesadelos/insônias, mágoas, ideações neuróticas, decisões, testes, depressão/ansiedade excedentes, impotências, entre outros.

Considerando a inquietação desse pulsar descompassado e desconexo, por vezes fomentador de atitudes tresloucadas, sensações intranquilas e sintomas capazes de nos adoecer, busquei sinalizar algumas distinções entre o que se entende psicanaliticamente por medo e fobia, exatamente por presenciar a confusão conceitual e sintomática experimentada por quem nos procura na clínica.

Para muitos, os termos mantêm relação de sinonímia, ou seja, carregam significados semelhantes, como casa e residência, abecedário e alfabeto. Não é bem isso!

A respeito do medo, uma coisa é certa: no passo a passo dado por aquela envelhecida cartilha da evolução, a espécie humana pôde aprender sobre a razão e importância dele à preservação individual e coletiva.

Diante do imprevisível, da espera, da perda ou da solidão, do novo ou do desconhecido, da fraqueza ou do desejo, do real ou do fantasioso, do sim, do não ou do incerto, há um dispositivo interno, localizado numa espécie de lugar mental denominado pré-consciente, hábil em acionar o pisca-alerta à autodefesa do sujeito ante a suspeita de um risco, e que, de modo singular e imediato, ativa respostas a salvaguardar a segurança, integridade e sanidade ao que possa afetar seu equilíbrio.

Essa engenhoca psíquica se articula por meio do acesso a arquivos mentais fornecedores de dados e informações as quais, por sua vez, derivam de vivências ou saberes transmitidos, isso tudo para atender a uma das quatro importantes funções do Superego, que é a de alertar (somando-se às de acusar, premiar e deformar).

Andando de braço dado com sensações de estranhamento (aqui nomeado de fluxo emocional), o medo surge então modelado pelo conjunto do conhecimento acumulado na esfera individual, social e cultural, cujo repertório habilitará à prevenção e cautela. Logo, sentir medo é saudavelmente protetivo, causando preocupação a falta dele e não a sua presença.

Por esses dias atendi um paciente que relatou sua paúra em relação a gatos. Havia sonhado com um tentando subir-lhe pelas pernas e, à mera recordação, afligiu-se e verbalizou a aversão ao animal, não se lembrando, contudo, de qualquer experiência ruim com felinos, mesmo na infância.

Ressaltou que esse ‘medo’ o desestabiliza; verdadeira repugnância o invade a suscitar constrangimentos, como não frequentar lugares onde tal espécie pode aparecer, e sintomas diversos como aceleração dos batimentos cardíacos, nojo, dificuldade em respirar, sudorese, tensão muscular e um desejo atroz de desaparecer.

O que se vê aqui, caro leitor e leitora, é a expressão de um temor insensato de repulsa por gato: fobia. Isso se distingue diametralmente do medo que, retomando parágrafos atrás, sempre é protetivo.

Fobia advém de uma impressão impactante de fragilidade ante algo que quase nunca apresenta perigo real e que se atrela a um sentir ilógico e desproporcional; refere-se a conflitos internos hostis, ameaças localizadas no psiquismo humano que levam a sensação de angustiante desamparo. Chega à consciência sob a escolta do fantasioso e associada a ambivalências emocionais (agressivas e/ou amorosas). Pode-se considerar que a fobia é a resposta possível construída pelo sujeito para lidar com as turbulências de seu mundo interior, seus duendes e fantasmas.

A escolha do objeto que atemoriza pode ser aleatória, pois o verdadeiro propósito é a liberação de uma apreensão interna capitaneada por impulsos primitivos trancafiados (desejos não virtuosos, animalescos, gananciosos, trapaceiros, agressivos, incestuosos, sujos etc.) e a se rebelarem nas celas do inconsciente. Tais desejos estão sempre à espreita de oportunidades a vazão, mas impedidos por conta da ação daquele censor interno já mencionado, o Superego; esse tutor de nossa civilidade age, no caso da fobia, para deformar o que está ‘causando’ por dentro, através de um processo chamado condensação, o que significaria, em outras palavras, transformar em verdadeira gororoba os conteúdos perigosos, deixando-os esquisitos e disformes, ajudando assim o sujeito a deslocar, canalizar para um alvo (objeto fóbico), o já insuportável complexo de tensões internas.  Coitado do gato... bode expiatório da vez!

As fobias infantis tendem a aparecer no final do processo edipiano e início da formação de seu superego; nessa etapa, a criança passa a temer as consequências de seus impulsos agressivos e libidinosos e, defensivamente, passa a praticar a ‘evitação’ para não perder o amor ou proteção de quem cuida dela e a quem ela ama e deseja ser igualmente amada.

Com isso, fazendo uso da fantasia, possibilita uma relativa harmonia interna – percebendo seus desejos e os negando – até que a libido, o emocional e o cognitivo se ajustem em seu psiquismo. Aos monstros dentro do quarto, sob sua cama e sobre a de seus pais, a fobia talvez seja uma boa receita para se transferir ao escuro debaixo daquele móvel – ou para o gato do citado paciente – o insuportável e irreprimível afluxo de seu caos interno.

Última atualização
4/4/2024 15:25
Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

E o monstro ainda mora aqui dentro: uma distinção sobre medo e fobia

Explorando a diferença entre medo e fobia na psicanálise, um guia para entender como cada um afeta a saúde mental e comportamento.Explorando a diferença entre medo e fobia na psicanálise, um guia para entender como cada um afeta a saúde mental e comportamento.
Vinícius Sgarbe
/
Adobe Firefly
Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.
4/4/2024 15:16
Marta Moneo

E o monstro ainda mora aqui dentro: uma distinção sobre medo e fobia

É comum a aparição, no consultório, de questões vinculadas a estados de angústia permeados por sensações de insegurança diante de objetos, sejam eles reais ou imaginários – para a psicanálise, objeto se refere a tudo que está fora do sujeito, em seu entorno, como pessoas, coisas e sistemas (profissional, familiar, de ensino, entretenimento etc.).

Tal vulnerabilidade também tende a ocorrer frente a conteúdos de repercussão interna, como doenças ou vivências conflitivas: lutos, traumas, pesadelos/insônias, mágoas, ideações neuróticas, decisões, testes, depressão/ansiedade excedentes, impotências, entre outros.

Considerando a inquietação desse pulsar descompassado e desconexo, por vezes fomentador de atitudes tresloucadas, sensações intranquilas e sintomas capazes de nos adoecer, busquei sinalizar algumas distinções entre o que se entende psicanaliticamente por medo e fobia, exatamente por presenciar a confusão conceitual e sintomática experimentada por quem nos procura na clínica.

Para muitos, os termos mantêm relação de sinonímia, ou seja, carregam significados semelhantes, como casa e residência, abecedário e alfabeto. Não é bem isso!

A respeito do medo, uma coisa é certa: no passo a passo dado por aquela envelhecida cartilha da evolução, a espécie humana pôde aprender sobre a razão e importância dele à preservação individual e coletiva.

Diante do imprevisível, da espera, da perda ou da solidão, do novo ou do desconhecido, da fraqueza ou do desejo, do real ou do fantasioso, do sim, do não ou do incerto, há um dispositivo interno, localizado numa espécie de lugar mental denominado pré-consciente, hábil em acionar o pisca-alerta à autodefesa do sujeito ante a suspeita de um risco, e que, de modo singular e imediato, ativa respostas a salvaguardar a segurança, integridade e sanidade ao que possa afetar seu equilíbrio.

Essa engenhoca psíquica se articula por meio do acesso a arquivos mentais fornecedores de dados e informações as quais, por sua vez, derivam de vivências ou saberes transmitidos, isso tudo para atender a uma das quatro importantes funções do Superego, que é a de alertar (somando-se às de acusar, premiar e deformar).

Andando de braço dado com sensações de estranhamento (aqui nomeado de fluxo emocional), o medo surge então modelado pelo conjunto do conhecimento acumulado na esfera individual, social e cultural, cujo repertório habilitará à prevenção e cautela. Logo, sentir medo é saudavelmente protetivo, causando preocupação a falta dele e não a sua presença.

Por esses dias atendi um paciente que relatou sua paúra em relação a gatos. Havia sonhado com um tentando subir-lhe pelas pernas e, à mera recordação, afligiu-se e verbalizou a aversão ao animal, não se lembrando, contudo, de qualquer experiência ruim com felinos, mesmo na infância.

Ressaltou que esse ‘medo’ o desestabiliza; verdadeira repugnância o invade a suscitar constrangimentos, como não frequentar lugares onde tal espécie pode aparecer, e sintomas diversos como aceleração dos batimentos cardíacos, nojo, dificuldade em respirar, sudorese, tensão muscular e um desejo atroz de desaparecer.

O que se vê aqui, caro leitor e leitora, é a expressão de um temor insensato de repulsa por gato: fobia. Isso se distingue diametralmente do medo que, retomando parágrafos atrás, sempre é protetivo.

Fobia advém de uma impressão impactante de fragilidade ante algo que quase nunca apresenta perigo real e que se atrela a um sentir ilógico e desproporcional; refere-se a conflitos internos hostis, ameaças localizadas no psiquismo humano que levam a sensação de angustiante desamparo. Chega à consciência sob a escolta do fantasioso e associada a ambivalências emocionais (agressivas e/ou amorosas). Pode-se considerar que a fobia é a resposta possível construída pelo sujeito para lidar com as turbulências de seu mundo interior, seus duendes e fantasmas.

A escolha do objeto que atemoriza pode ser aleatória, pois o verdadeiro propósito é a liberação de uma apreensão interna capitaneada por impulsos primitivos trancafiados (desejos não virtuosos, animalescos, gananciosos, trapaceiros, agressivos, incestuosos, sujos etc.) e a se rebelarem nas celas do inconsciente. Tais desejos estão sempre à espreita de oportunidades a vazão, mas impedidos por conta da ação daquele censor interno já mencionado, o Superego; esse tutor de nossa civilidade age, no caso da fobia, para deformar o que está ‘causando’ por dentro, através de um processo chamado condensação, o que significaria, em outras palavras, transformar em verdadeira gororoba os conteúdos perigosos, deixando-os esquisitos e disformes, ajudando assim o sujeito a deslocar, canalizar para um alvo (objeto fóbico), o já insuportável complexo de tensões internas.  Coitado do gato... bode expiatório da vez!

As fobias infantis tendem a aparecer no final do processo edipiano e início da formação de seu superego; nessa etapa, a criança passa a temer as consequências de seus impulsos agressivos e libidinosos e, defensivamente, passa a praticar a ‘evitação’ para não perder o amor ou proteção de quem cuida dela e a quem ela ama e deseja ser igualmente amada.

Com isso, fazendo uso da fantasia, possibilita uma relativa harmonia interna – percebendo seus desejos e os negando – até que a libido, o emocional e o cognitivo se ajustem em seu psiquismo. Aos monstros dentro do quarto, sob sua cama e sobre a de seus pais, a fobia talvez seja uma boa receita para se transferir ao escuro debaixo daquele móvel – ou para o gato do citado paciente – o insuportável e irreprimível afluxo de seu caos interno.

Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.
Última atualização
4/4/2024 15:25

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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