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Opinião

Algumas considerações sobre gravura e inteligência artificial

Este artigo explora as possíveis relações entre Gravura e Inteligência Artificial em poéticas contemporâneas.Este artigo explora as possíveis relações entre Gravura e Inteligência Artificial em poéticas contemporâneas.
Rafael Carvalho
/
Imagens geradas pela IA Microsoft Copilot, a partir de descrição verbal da xilogravura Chuva, de Oswaldo Goeldi.
Gracon

É possível criar gravuras usando Inteligência Artificial (IA) ou definir as criações de IA em termos de algum tipo ou categoria de gravura? A resposta é um tanto complexa. Neste texto, vamos analisar essa relação entre gravura e IA, explorando as possibilidades e limitações dessa nova tecnologia em aplicações gráficas.

Primeiro, precisamos entender que a IA não se resume a um único aplicativo ou software. Hoje em dia, o termo abrange uma ampla gama de tecnologias com diferentes funções, desde reconhecimento de texto e objetos até a criação de imagens. Você mesmo pode realizar experimentos usando a versão gratuita da IA da Microsoft, Copiloto.

A linguagem da gravura pode ser dividida em duas categorias conceituais principais: tradicional e expandida/ampliada. A tradicional inclui impressão em relevo (xilografia), a entalhe (água-forte), plana (litografia) e por permeação (estêncil), enquanto a expandida propõe novas abordagens ao pensar a matriz e os processos de reprodução, como no caso da fotografia e ilustração digitais, nas quais o arquivo binário (.jpg, .png, .psd, .ai etc.) constitui a matriz que possibilita a impressão seriada. 

Ao usar um serviço de IA para criar imagens, é possível, inicialmente, descrever uma cena e indicar um estilo ou uma cópia de estilo de algum artista (que a máquina tenha estudado previamente). A IA produz, então, as imagens conforme esses comandos em interação com o seu banco de dados. No entanto, é importante notar que a máquina nem sempre entenderá o estilo a ser realizado e/ou não respeitará literalmente o que foi escrito, ou seja, a produção estética da máquina pode se sobrepor à descrição de input (valor de entrada). Por exemplo, ao descrever uma gravura de Oswaldo Goeldi Chuva, de 1957 — no Copiloto, mesmo indicando a materialidade da matriz (xilogravura), a ferramenta produz uma imagem sem as características visuais próprias à gravura sobre madeira e, por ser uma descrição de cunho realista, sua resposta ao comando oscila entre a fotografia e a ilustração digital.

Oswaldo Goeldi, Chuva, 1957, xilogravura, 22,00 cm x 29,50 cm, Enciclopédia Itaú Cultural.

Outro ponto interessante é que a IA pode criar imagens com base em artistas específicos (tendo aprendido sobre eles previamente), como, por exemplo, as criadas pela IA Midjourney a partir de reproduções de obras da gravadora alemã Käthe Kollwitz. Contudo, mesmo nesses casos, a máquina pode interpretar de forma diferente o estilo e os procedimentos do artista, os quais vão além da imagem final, impressa. A máquina não é capaz, então, de simular o embate entre a expressividade do gesto de Kollwitz e a resistência a ele que a matriz impõe.

Nos processos artísticos em geral, e na gravura em particular, o artista se relaciona com a materialidade, que tem um papel ativo na constituição da poética. No campo da gravura tradicional, essa relação se dá por meio da escolha das madeiras, dos tipos de metais e ácidos, das ferramentas de corte e da forma de utilizá-las. Já no caso da ilustração digital, que pode ser considerada gravura expandida, a materialidade corresponde às ferramentas digitais (diferentes softwares) e aos recursos técnicos (diferentes tipos de pincéis eletrônicos e modos de fazer, por exemplo) para a produção da imagem. 

Ao observar o caso das inteligências artificiais, contudo, constatamos que essas relações diretas entre o corpo e a matéria são suprimidas — o artista se reduz a mero operador de um objeto técnico programado para seguir seu próprio algoritmo. Além disso, nem sempre as empresas de IA optam pelo código-fonte aberto, sendo, em geral, verdadeiras “caixas-pretas”, expressão cunhada por Vilém Flusser, referindo-se à câmera fotográfica, no livro A filosofia da caixa preta (1983). 

Além da matéria e dos materiais, a gravadora Fayga Ostrower, em seu livro O acaso e a criação artística (1995), trabalha o conceito de acaso significativo para descrever a importância do acaso, em especial, para os processos de criação, sendo esse acaso não mera aleatoriedade ou causalidade cotidiana, mas a relação íntima dos acontecimentos que rodeiam o artista com a sua própria vida e seus desejos: um acaso que é percebido pelo artista, o qual vê nele, então, o seu caminho de pesquisa. Na IA, contudo, temos uma forma matematizada das expressões visuais. Poderíamos perguntar, inclusive, quem é, nesse caso, o autor da obra: quem escreve o input, os programadores, os empresários ou o próprio algoritmo? De qualquer maneira, independente de a quem pertença a autoria da imagem gerada pela máquina, ela carece de relações subjetivas, íntimas e de vida e é nesse caminho do acaso, do erro e do inesperado que muitos artistas encontram a sua poética.

“Ponto de partida, aqui, é a noção de que não existe criação artística sem acasos. (...) o próprio tecido de vida não é senão uma infinita teia de acasos.(...) A fonte da criatividade artística, assim como de qualquer experiência criativa é o próprio viver. (...) Mas o ponto que quero chegar é o seguinte: é nesse nível básico, elementar, que ocorrem as decisões mais importantes do artista, decisões estilísticas largamente inconscientes. (...) Na prática, certas intenções do artista, vagas que sejam inicialmente, convergem numa forma ou ‘ideia geradora’, também vagas talvez, mas que irão se revelar ao artista no decorrer da elaboração formal da imagem. Quer dizer: o próprio processo de trabalho se converte em processo criador; de buscas e de descobertas sempre mais abrangentes. Isto requer que, além de receptivo, o artista seja capaz de sustentar crescentes tensões psíquicas, e ainda, que também seja capaz de retomá-las quantas vezes for necessário e no nível de concentração anterior (...).  Quanto ao computador, ele é incapaz de duvidar ou hesitar como um ser humano. Ele tem um programa a cumprir. Os erros e dúvidas que ocorram vão por conta do funcionamento, ou seja, da razão instrumental; jamais se trata de dúvidas de criação. (...) tem [contudo] que haver uma visão subjetiva. Sem ela, não existem dúvidas e não se cria. (...) Mas a programação é da essência da linguagem do computador (aqui me refiro sobretudo à linguagem em nível da "Inteligência Artificial", o computador gerando uma variedade de caminhos e combinações, simulando processos associativos e criativos). Esta é uma contradição muito séria em termos de criação artística.” (Ostrower, 1995)

Por Rafael Carvalho.

Última atualização
22/2/2024 10:39
Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

Opinião

Algumas considerações sobre gravura e inteligência artificial

Este artigo explora as possíveis relações entre Gravura e Inteligência Artificial em poéticas contemporâneas.Este artigo explora as possíveis relações entre Gravura e Inteligência Artificial em poéticas contemporâneas.
Rafael Carvalho
/
Imagens geradas pela IA Microsoft Copilot, a partir de descrição verbal da xilogravura Chuva, de Oswaldo Goeldi.
Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
22/2/2024 10:05
Gracon

Algumas considerações sobre gravura e inteligência artificial

É possível criar gravuras usando Inteligência Artificial (IA) ou definir as criações de IA em termos de algum tipo ou categoria de gravura? A resposta é um tanto complexa. Neste texto, vamos analisar essa relação entre gravura e IA, explorando as possibilidades e limitações dessa nova tecnologia em aplicações gráficas.

Primeiro, precisamos entender que a IA não se resume a um único aplicativo ou software. Hoje em dia, o termo abrange uma ampla gama de tecnologias com diferentes funções, desde reconhecimento de texto e objetos até a criação de imagens. Você mesmo pode realizar experimentos usando a versão gratuita da IA da Microsoft, Copiloto.

A linguagem da gravura pode ser dividida em duas categorias conceituais principais: tradicional e expandida/ampliada. A tradicional inclui impressão em relevo (xilografia), a entalhe (água-forte), plana (litografia) e por permeação (estêncil), enquanto a expandida propõe novas abordagens ao pensar a matriz e os processos de reprodução, como no caso da fotografia e ilustração digitais, nas quais o arquivo binário (.jpg, .png, .psd, .ai etc.) constitui a matriz que possibilita a impressão seriada. 

Ao usar um serviço de IA para criar imagens, é possível, inicialmente, descrever uma cena e indicar um estilo ou uma cópia de estilo de algum artista (que a máquina tenha estudado previamente). A IA produz, então, as imagens conforme esses comandos em interação com o seu banco de dados. No entanto, é importante notar que a máquina nem sempre entenderá o estilo a ser realizado e/ou não respeitará literalmente o que foi escrito, ou seja, a produção estética da máquina pode se sobrepor à descrição de input (valor de entrada). Por exemplo, ao descrever uma gravura de Oswaldo Goeldi Chuva, de 1957 — no Copiloto, mesmo indicando a materialidade da matriz (xilogravura), a ferramenta produz uma imagem sem as características visuais próprias à gravura sobre madeira e, por ser uma descrição de cunho realista, sua resposta ao comando oscila entre a fotografia e a ilustração digital.

Oswaldo Goeldi, Chuva, 1957, xilogravura, 22,00 cm x 29,50 cm, Enciclopédia Itaú Cultural.

Outro ponto interessante é que a IA pode criar imagens com base em artistas específicos (tendo aprendido sobre eles previamente), como, por exemplo, as criadas pela IA Midjourney a partir de reproduções de obras da gravadora alemã Käthe Kollwitz. Contudo, mesmo nesses casos, a máquina pode interpretar de forma diferente o estilo e os procedimentos do artista, os quais vão além da imagem final, impressa. A máquina não é capaz, então, de simular o embate entre a expressividade do gesto de Kollwitz e a resistência a ele que a matriz impõe.

Nos processos artísticos em geral, e na gravura em particular, o artista se relaciona com a materialidade, que tem um papel ativo na constituição da poética. No campo da gravura tradicional, essa relação se dá por meio da escolha das madeiras, dos tipos de metais e ácidos, das ferramentas de corte e da forma de utilizá-las. Já no caso da ilustração digital, que pode ser considerada gravura expandida, a materialidade corresponde às ferramentas digitais (diferentes softwares) e aos recursos técnicos (diferentes tipos de pincéis eletrônicos e modos de fazer, por exemplo) para a produção da imagem. 

Ao observar o caso das inteligências artificiais, contudo, constatamos que essas relações diretas entre o corpo e a matéria são suprimidas — o artista se reduz a mero operador de um objeto técnico programado para seguir seu próprio algoritmo. Além disso, nem sempre as empresas de IA optam pelo código-fonte aberto, sendo, em geral, verdadeiras “caixas-pretas”, expressão cunhada por Vilém Flusser, referindo-se à câmera fotográfica, no livro A filosofia da caixa preta (1983). 

Além da matéria e dos materiais, a gravadora Fayga Ostrower, em seu livro O acaso e a criação artística (1995), trabalha o conceito de acaso significativo para descrever a importância do acaso, em especial, para os processos de criação, sendo esse acaso não mera aleatoriedade ou causalidade cotidiana, mas a relação íntima dos acontecimentos que rodeiam o artista com a sua própria vida e seus desejos: um acaso que é percebido pelo artista, o qual vê nele, então, o seu caminho de pesquisa. Na IA, contudo, temos uma forma matematizada das expressões visuais. Poderíamos perguntar, inclusive, quem é, nesse caso, o autor da obra: quem escreve o input, os programadores, os empresários ou o próprio algoritmo? De qualquer maneira, independente de a quem pertença a autoria da imagem gerada pela máquina, ela carece de relações subjetivas, íntimas e de vida e é nesse caminho do acaso, do erro e do inesperado que muitos artistas encontram a sua poética.

“Ponto de partida, aqui, é a noção de que não existe criação artística sem acasos. (...) o próprio tecido de vida não é senão uma infinita teia de acasos.(...) A fonte da criatividade artística, assim como de qualquer experiência criativa é o próprio viver. (...) Mas o ponto que quero chegar é o seguinte: é nesse nível básico, elementar, que ocorrem as decisões mais importantes do artista, decisões estilísticas largamente inconscientes. (...) Na prática, certas intenções do artista, vagas que sejam inicialmente, convergem numa forma ou ‘ideia geradora’, também vagas talvez, mas que irão se revelar ao artista no decorrer da elaboração formal da imagem. Quer dizer: o próprio processo de trabalho se converte em processo criador; de buscas e de descobertas sempre mais abrangentes. Isto requer que, além de receptivo, o artista seja capaz de sustentar crescentes tensões psíquicas, e ainda, que também seja capaz de retomá-las quantas vezes for necessário e no nível de concentração anterior (...).  Quanto ao computador, ele é incapaz de duvidar ou hesitar como um ser humano. Ele tem um programa a cumprir. Os erros e dúvidas que ocorram vão por conta do funcionamento, ou seja, da razão instrumental; jamais se trata de dúvidas de criação. (...) tem [contudo] que haver uma visão subjetiva. Sem ela, não existem dúvidas e não se cria. (...) Mas a programação é da essência da linguagem do computador (aqui me refiro sobretudo à linguagem em nível da "Inteligência Artificial", o computador gerando uma variedade de caminhos e combinações, simulando processos associativos e criativos). Esta é uma contradição muito séria em termos de criação artística.” (Ostrower, 1995)

Por Rafael Carvalho.

Gracon
Grupo de pesquisa em Gravura Contemporânea da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
Última atualização
22/2/2024 10:39

Compreender o passado ajuda a construir um presente consciente

Eu e minhas circunstâncias à busca de propósito

Maku de Almeida
19/5/2024 16:26

Uma sequência de decisões me trouxe até aqui. Nem todas foram boas ou sensatas. Algumas foram realmente muito ruins. Gosto muito deste "aqui" e fico tentada a pensar: eu chegaria até aqui por outro caminho? Há coisas que ainda quero iluminar. Não me falta coragem. Mas há grandes e sensacionais conquistas. Portanto, gratidão ao aqui. Pois o lá já virou pó.

A respeito disso, um filósofo espanhol que eu aprecio sem moderação, José Ortega y Gasset, em seu livro Meditaciones del Quijote, diz: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não salvo a mim".

Preparar panquecas e viver é uma receita de amor e paciência

Jane Hir
19/5/2024 16:08

Algumas comidas são marcadas pelo afeto. Tenho memória afetiva de muitas e entre elas está a panqueca. Na minha infância, que já transcorreu há muito tempo, a mágica das rodelas de massa dourada sendo viradas em um gesto preciso era realizada pela minha avó.

Em uma época de poucas variedades alimentícias, pelo menos para uma família numerosa como a nossa e mantida por um pai operário, a panqueca recheada de doce de leite feito em casa ou apenas polvilhada com açúcar e canela, assumia ares de requinte.

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